Fã-Repórter| “Este texto não é sobre o Emicida, é sobre o Pingo”

O Pingo não chegou a ouvir Emicida, ele foi assassinado bem perto da casa dele, que também é perto da minha, nessa guerra civil não declarada”

Assim que colocamos o Blog do Emicida no ar com a sessão “Seja um Fã-Repórter”, o baiano Helder Conceição foi o primeiro a mandar um texto. De cara, a história chamou a atenção pelo título e, a seguir, pelo conteúdo impactante. Ele é de Salvador, a cidade mais negra do país, e nos conta que ouvir Emicida fez com que sua mãe se reconhecesse negra, e não “morena”, como costumava se referir à própria cor, em uma atenuação socialmente aceita.

Fotógrafo, o rapaz de 25 anos se inspira nas músicas de Emicida para para fazer alguns registros, disponíveis em seu Instagram e também no Facebook.
Mas, diante de tudo isso, o que ele lamenta, de verdade, é que o amigo Pingo – sobre quem é este texto – não viva essas experiencias ao lado dele. Pingo era um garoto que, como Helder, amava Racionais e Sabotage e acabou sucumbindo à guerra nossa de cada dia.


Este texto não é sobre o Emicida, é sobre o Pingo
Por Helder Conceição

Há alguns anos, agora já não tão perto quanto antes, eu tinha um amigo, o Pingo. O Pingo não chegou a ouvir Emicida, ele foi assassinado bem perto da casa dele, que também é perto da minha, nessa guerra civil não declarada, onde que a gente sobrevive sabe lá Deus como. Se Pingo estivesse vivo, adoraria o novo CD do Emicida.

A gente não sabia explicar o porque de querer “que eles se fodam” , mas o Emicida soube explicar. Não faz diferença pra Pingo, nem pro irmão dele, que também foi morto aqui, bem pertinho da casa dele – que também é perto da minha-, por um rapaz que lhe devia 50 reais, à facadas, enquanto carregava o seu filho no colo.
Pingo seria tio se não tivesse sido assassinado. Edgar, o irmão de Pingo, seria pai se não tivesse sido assassinado. Mas eu sei que eles iam adorar o novo CD do Emicida.

Hélder (no fundo), seu irmão Heraldo (de óculos) e Pingo (de camiseta branca e azul no canto direito)
Helder (no fundo), seu irmão Heraldo (de óculos) e Pingo (de camiseta branca e azul no canto direito)

Quando a gente ouvia Racionais ou Sabotage, sentados na escadaria que é comum em toda favela, nos sentíamos incluídos, sabe? Era muito bom ouvir alguém colocando pra fora o que a confusão do dia a dia não nos permitia ver com tanta clareza. Naquela época a gente até escrevia, saíam uns raps, uns textos, que a gente apresentava na escola e tal. Era uma vontade incontrolável de se expressar, mas era difícil expressar.

Eu pensava em suicídio desde muito cedo também, mas a gente não sabe chamar isto de suicídio quando não sabe bem qual é o sentimento. Eu só não queria ficar aqui. Os CDs do Emicida me fizeram ter vontade de continuar lutando. Porque é uma luta, né? Pra preto, pobre, qualquer coisa que você consegue, qualquer pedacinho de sucesso é com sangue, suor e muita lágrima. Mas a gente consegue!

Comecei o curso de Direito em uma universidade pública, mas vi que Direito não era pra mim. O Direito é só deles lá. Me faltava Machado de Assis, de Xangô pra entender que justiça é outra coisa, é outro negócio. Justiça é ver, depois de muitos anos, minha mãe que sentia vergonha de dizer que era preta (porque ensinaram pra ela que o bom era ser moreno), chegar de fininho no meu quarto, enquanto eu ouvia o som de Emicida e perguntar:
-Quem é esse menino?
– É o Emicida mãe.
– Gostei da musica dele.

E me chamar, quando o Emicida tá passando no Luciano Huck, pra ver aquele menino lá que fala tão lindo da gente. Me perguntei: quantas mães não chamaram seus filhos naquele dia pelo mesmo motivo? Ver meu pai, que antes achava esse som barulhento demais, pedindo pra por aquele CD novo do Emicida e vê-lo encontrar a voz de Caetano em um trecho que nem eu, que ouvi como uma oração, tinha percebido… É de arrepiar.

Mas é um arrepio diferente do dia em que vi lagrimas nos olhos do meu pai, quando eu, que tinha saído para ir ao shopping, ainda na entrada, fui barrado por um policial que não me deixou entrar. Disse que eu andava com os meninos da confusão, que me conhecia. O Pingo passou por isso também, mas a mãe dele não pôde ter essa sensação de encontrar o som do Emicida. Depois que os filhos foram assassinados, se entregou à diabetes. Perdeu as pernas, ficou cega, morreu.

Depois do enterro de Pingo eu não conseguia vê-la, nem olhar para aquele rosto. Me sentia culpado, responsável pelo meu menor ter sido levado por essa merda de guerra que a gente não começou, mas é sempre quem termina pagando a conta.
O Emicida tocou aqui em Salvador há pouco tempo, duas vezes! Pra gravação de final de ano da Globo e em um show que foi foda! Eu não pude ir, faltava grana. Sabe o que foi o melhor desse show? Ver um monte de colega, amigo, gente que eu não via há um tempo, no Facebook postando foto com o EMICIDA!

Saber que eles também estavam ouvindo, que as meninas e os meninos, todos negros, sentiram aquela voz que tem dentro da gente gritar pra fora na voz desse cara, me fez um bem sem tamanho. Me fez até ter uma saudade boa de Pingo, não a triste, que essa eu tenho sempre, antes mais do que hoje.
Se Pingo estivesse vivo, ia querer fazer uma foto com o Emicida, ia pirar com os bonés de aba reta e aquele colar de madeira. Eu conhecia meu menor, eu sei que ia. Mas ele não tá mais aqui. Quem tá aqui é a gente!

E é pra viver um pouco mais feliz nessa luta diária contra essa maré, que só empurra a gente pra baixo, que eu lanço esse obrigado. Não pro Emicida, mas pro Pingo, que passou por aqui muito rápido mas deixou marcas em todo lugar, inclusive, pra mim, também no Emicida.



Sobre o autor

 

helder-conceicao-emicida

Em seu Instagram @helderphoto, Helder Conceição registra o cotidiano de Salvador utilizando como legenda letras de músicas. Muitas delas, de Emicida. Separamos algumas imagens:

 

8 comentários Adicione o seu

  1. Fabíola disse:

    Do caralho esse texto. Sinta-se fortalecido irmão. Tamo junto. #SalCity

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  2. Alexandre gama. disse:

    Me fez até ter uma saudade boa de Pingo, não a triste, que essa eu tenho sempre, antes mais do que hoje.
    #MUITOFODA.
    ótimo texto.

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  3. Sentindo verdadeiro e forte. Acredito que um as chuvas com os nossos “Pingos” se tornarão em um dia insolarado e de festa.

    Se puder visitar o meu blog, seria uma honra forma um parceira com esse.

    http://quaseumjornalista.wordpress.com

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  4. Verônica disse:

    Me emocionei com essa história. ..Quantas histórias igual a do Pingo temos por ai…Porém a vida sehue para aqueles que ficam..
    Salve!!!

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  5. Gisele Magestade disse:

    Texto maravilhoso!
    E quantas histórias como essa nós conhecemos? Triste é saber que muitos de nós não estão nem aí pra isso!
    #Emicidamerepresenta
    #Heldermerepresenta

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  6. Celina Souza disse:

    Foda… esse relato! só nós negros sabemos o que é sentir um arrepio no corpo ao ouvir as músicas do EMICIDA

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